O Quarto Distrito de Porto Alegre

Por: Luciana Weber
O que hoje conhecemos como 4º Distrito, na Zona Norte da cidade, foi por décadas um dos principais motores econômicos da capital. Entre os bairros Floresta, Navegantes, São Geraldo, Humaitá e Farrapos, o distrito abrigou indústrias têxteis, alimentícias e de logística, estreitamente ligadas à ferrovia e ao cais do Guaíba. No final do século XIX, a cidade ainda crescia em torno do porto e das linhas férreas. A proximidade com o rio facilitava o transporte de mercadorias e matérias-primas e o distrito se consolidou como uma área industrial.
Fábricas como a A.J. Renner, a têxtil Fiação, Tecidos Porto-Alegrense (Fiateci) e a fábrica de chocolates Neugebauer marcaram a paisagem e a vida cotidiana. Trabalhadores de diferentes regiões do estado migraram para Porto Alegre em busca de emprego e formaram comunidades ao redor das fábricas.


Rua Voluntários da Pátria – S/D

Rua Frederico Mentz esquina com travessia São José – 1924
O 4º Distrito não era apenas um bairro: era um território produtivo, onde moradia, trabalho e transporte se misturavam. As vilas operárias surgiam próximas aos portões das indústrias e armazéns, oficinas e pequenos comércios cresciam nas ruas paralelas à Avenida Voluntários da Pátria.




O barulho das máquinas, o vai e vem de caminhões e trens faziam parte da rotina. As fábricas definiam horários, rotas e o próprio ritmo da cidade. A sociabilidade se estruturava em torno do trabalho e o distrito se tornou um símbolo da industrialização porto-alegrense durante o século XX. Mas o mesmo território que impulsionou a economia, nas décadas seguintes, sentiu os efeitos de um processo inverso: a desindustrialização.
A partir dos anos 1970, mudanças econômicas e tecnológicas começaram a transformar o perfil do 4º Distrito. Com a abertura de novas rodovias, o transporte ferroviário perdeu importância. Cidades vizinhas, como Canoas, Gravataí e Cachoeirinha, ofereceram terrenos mais baratos e melhores condições fiscais, atraindo empresas que antes ocupavam galpões na capital. O aumento dos custos de operação e o esgotamento de infraestrutura urbana provocaram o fechamento gradual das indústrias.
As consequências foram diretas, a perda de empregos afetou as famílias que dependiam do trabalho industrial e parte dos moradores deixou a região. Galpões foram abandonados e outros se tornaram depósitos informais ou espaços subutilizados. Ao mesmo tempo, áreas antes industriais passaram a ser ocupadas por moradias populares, como a Vila dos Papeleiros. O que começou como uma ocupação de catadores de materiais recicláveis na região do bairro Navegantes, cresceu sobretudo, após o fim das ferrovias e atraiu famílias de baixa renda que passaram a trabalhar com reciclagem na cidade.
Essas comunidades vivem até hoje os efeitos de um processo desigual. O saneamento é precário, a drenagem insuficiente e as moradias se expandem sobre áreas de risco. Durante as enchentes de 2024, o distrito foi um dos lugares mais atingidos de Porto Alegre, onde dezenas de famílias foram desalojadas. O contraste entre galpões reformados e casas alagadas reforçou a diferença entre o discurso da revitalização e a realidade cotidiana.
Desde a década de 1990, sucessivos planos urbanísticos municipais tentaram redesenhar a região, mas com pouca continuidade. Como aponta o pesquisador da UFRGS, Matheus Gonçalves, em artigo publicado em 2022, nas últimas três décadas, uma série de planos e projetos foram elaborados pela Prefeitura com o objetivo de reestruturar o antigo distrito industrial, mas poucos avançaram para a implementação. No terreno, a paisagem permanece marcada pela sobreposição de épocas: Galpões industriais reformados convivem com casas populares e lotes vazios alternam-se com obras urbanísticas inacabadas.
No início da década de 2010, novos agentes começaram a ocupar o distrito. Galpões industriais passaram a ser reutilizados por empresas de tecnologia e cultura. O Instituto Caldeira, inaugurado em 2021, por exemplo, no bairro Navegantes, tornou-se um dos símbolos dessa mudança. Instalada em uma antiga área da Companhia Caldeira, a estrutura de 22 mil metros quadrados reúne startups, investidores e empresas voltadas à inovação.
Essas iniciativas representam um novo modelo de ocupação baseado na transformação do patrimônio industrial em espaços de economia criativa e tecnologia. O programa municipal +4D, criado pela Lei Complementar 960 de 2022, oferece incentivos fiscais, aumento de gabarito e flexibilização de usos para atrair investimentos. A proposta busca integrar habitação, serviços e inovação em um mesmo território.
Entretanto, a valorização imobiliária em curso vem gerando tensões sociais. O aumento do valor do solo atrai o mercado imobiliário e eleva o custo de vida local, ameaçando expulsar moradores de longa data. O resultado é que o 4º Distrito vive realidades sobrepostas: enquanto novos empreendimentos de tecnologia e cultura prosperam em estruturas reformadas, muitos moradores tradicionais enfrentam dificuldades com a moradia e serviços públicos insuficientes.
A sobreposição dessas realidades mostra que o 4º Distrito não se transforma de forma homogênea. Enquanto políticas públicas como o programa +4D incentivam novas empresas e projetos de inovação a ocupar galpões reformados, moradores das vilas que se espalham pelos bairros Navegantes, Humaitá e Farrapos lidam diariamente com o aumento do custo de vida e com a pressão por deslocamento. Na mesma quadra em que surgem cafés e escritórios voltados ao público de classe média, famílias enfrentam risco de remoção, dificuldades persistentes para garantir moradia adequada e acesso regular a serviços públicos essenciais. A revitalização anunciada pela Prefeitura convive com áreas inteiras que permanecem alagadas nos períodos de chuva e revela o contraste entre investimento privado e ausência de políticas sociais estruturantes.
Essa assimetria também aparece na relação entre o poder público e os trabalhadores que dependem da reciclagem. A Vila dos Papeleiros, onde centenas de famílias sobrevivem da coleta e triagem de resíduos, vive sob um ciclo constante de insegurança. Nos últimos anos, iniciativas municipais buscaram restringir a circulação de carroças e a atuação de catadores independentes, em contrapartida, não apresentaram alternativas concretas de renda. Enquanto startups e centros de tecnologia são celebrados como parte do futuro do 4º Distrito, a poucos metros dali os catadores enfrentam fiscalizações, remoções e perda de espaço em um território que sempre ocuparam. A política urbana se mostra distinta para cada grupo: incentivo e flexibilização para novos empreendedores e restrições e invisibilidade para trabalhadores informais.




Nos arredores da Estação Rodoviária e da avenida Farrapos, outros grupos também sentem os efeitos dessas dinâmicas. Usuários de drogas, prostitutas e pessoas em situação de rua se concentram em um espaço que há décadas carece de políticas de saúde, habitação e assistência social. A falta de infraestrutura pública torna mais difícil enfrentar problemas de saúde mental e esses atendimentos seguem entre os mais comuns nas unidades de pronto atendimento da região. Para esses moradores, o avanço de novos empreendimentos não representa regeneração urbana, mas sim, o risco de serem empurrados ainda mais para as margens da cidade. Eles vivem nos mesmos bairros em que se discute tecnologia e inovação e sua presença raramente compõe os debates sobre o futuro do distrito.
Cada pauta apresentada a seguir ao longo do mapa, das vilas às obras da Arena do Grêmio, dos catadores às trabalhadoras da noite, mostra uma camada distinta do 4º Distrito. São histórias diferentes, vividas por grupos que raramente se encontram e habitam o mesmo território marcado por desigualdade, disputa urbana e ausência de políticas integradas que unam-os como um todo. O projeto mostra como transformações econômicas, escolhas políticas e processos de gentrificação afetaram estas pessoas. O 4º Distrito é um território onde cada mudança teve consequências diretas na vida de quem sempre esteve ali e de quem chega agora.
